Para a Rute
O que te surpreende quando partes.
O edifício em que trabalhaste a vida inteira,
casa de pedra e silêncios reiterados
por portas que se fechavam, batiam
a passagem das horas e o acabar dos ofícios.
O edifício onde trabalhaste a vida inteira
depois do comércio de palavras e objectos
e alegrias repartidas, depois do júbilo repartido,
depois da juventude.
O edifício frio, pedra e vento, o edifício
de mágoa e janelas entreabertas para o nada.
O edifício onde trabalhaste a vida inteira,
onde te cruzaste com anónimos destinos,
onde se esquecia a amizade e se murava
o rosto com máscara de cortesia,
onde por delicadeza abandonaste toda a esperança
e com sensatez esperaste o fim, o fim
que te apaixonava, a desaparição sem indício
ou complacência ou ruído de portas que se fechavam,
batiam, e continuam a bater.
O edifício onde trabalhaste a vida inteira,
esperando que o mínimo gesto vezes sem conta repetido
até ao improvável te transportasse,
onde este gesto, este preciso gesto pelo voo quebrado,
da terra eliminasse a deriva, o desespero.
O edifício onde trabalhaste a vida inteira,
onde acreditaste em milagres quando não havia
em que acreditar,
onde por vontade alheia tão docilmente aprendida
domesticaste o movimento,
para, parado, chorares a Ítaca da Ítaca,
aí, onde a fabulosa árvore
era miragem apenas.
O edifício onde trabalhaste a vida inteira.
O edifício que, dobrado o escuro tempo, és.
S/ título, Luís Quintais, in Verso Antigo, Edição Cotovia, 2001.
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