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segunda-feira, 21 de maio de 2018

Correr para onde, se é dentro o labirinto?


‘[…] Talvez ela nem existisse
Talvez fosse mesmo o tempo que se avoluma inundando tudo, cobrindo, fechando
Logo mais teríamos notícias dos últimos acontecimentos
Os deuses exigem tanto e por isso decidi aquele mesmo dia, além de me amarrar ao mastro
Também cobriria de cera os ouvidos
As sereias e suas bocas pequenas abriam e fechavam
Ainda hoje não escuto nada e tudo é líquido e estrondoso
Todos os caminhos levam ao corpo.'”

Morreu hoje a escritora Assionara Souza, aos 49 anos.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Reciclar

foto: Shel Silverstein, Every Thing on It

Deixei os restos do nosso amor
num saco de plástico
no armário debaixo do lava-loiça,
não cabiam no caixote do lixo.
E quando levares o lixo,
presta atenção,
não é para caixote azul, verde ou amarelo,
é para o cinzento, lixo doméstico comum,
indiferenciado, o nosso amor acabado,
e o carro passa às segundas, quartas e sextas.

 #raquelserejomartins

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Óbito


O nosso amor morreu
em extremo mau estado,
vítima de doença prolongada,
que nenhum de nós
era a favor da eutanásia.
Podia ter sofrido menos,
padecido menos,
penado menos,
mas mudámos de opinião
demasiado tarde.

Poema Raquel Serejo Martins
Banda Sonora Nick Cave e o som do luto

quinta-feira, 5 de maio de 2016

lá no cabo do mundo onde morávamos durante um momento


se eu tivesse dois ou três dentes de ouro
mordia-te o corpo todo se eu tivesse
mel e fósforo para tocá-lo
tocava-te no sexo
se eu cantasse num murmúrio quente cheio de êrros
chamava-te junto ao ouvido
se tivesse o teu nome escrito pelas unhas fora
pedia que me deixasses entrar mudo e selado
na alma e na memória
se me dissesses: beija-me onde queiras
onde quereria eu beijar-te
senão nas pálpebras e nos dedos e nos cabelos
se perguntasses: e onde vamos viver?
eu respondia: onde não sei o quê cheio de ar revôlto
mas se por exemplo eu tivesse um diamante
e o diamante desabrochasse
e esse diamante eu mesmo o pusesse
no meio do mundo
e o deixasse crescer até ser uma árvore
e se dormias debaixo dela eu despia-te
peça a peça a roupa quieta até
as minhas mãos serem tão íntimas que dormias
e acordavas nas minhas mãos
e eu tocava-te então na boca do corpo
por onde estremecias toda
e eu tocava a tua fundura que não acabava nunca
extremo a extremo a tua delicadeza extrema
e punha nela o selo
e punha o sêlo da minha boca e tu acordavas toda
e ficavas tocada toda todo o tempo
lá no cabo do mundo onde morávamos durante um momento

In Letra Aberta

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Cansada de mim


Foi domingo e não descansei.
Foi domingo e não dancei.
Foi domingo e não amei.
Louvei deus nenhum.
Mortal comum,
cruzei dois dedos
e fingi acreditar.
Passou a manhã,
passou a tarde,
anoiteceu.
Os segundos como grainhas
de romãs, difíceis de descascar.
De chinelos e pijama de flanela
jantei com o gato
e flores na mesa,
dálias amarelas
a envelhecer devagarinho.
E o dia esteve bonito,
apesar do frio,
é dezembro, que se lhe há-de fazer.

inédito, Dezembro|2015
Foto: Imogen Cunningham, Three Dancers, Mills College, 1929

Vala comum


Os corpos arrumados como arenques numa lata,
de viés, uma cabeça dois pés, uma cabeça dois pés.
Os corpos quase intactos
preservados não em azeite, nem em óleo de girassol,
mas por um Inverno frio e pouco chuvoso.
Até as roupas estavam em bom estado.
As lãs e as fazendas são para lavar à mão e a frio.
E estavam todos lá, pais, avós, filhos, tios, primos, sobrinhos
e dois vizinhos que eram como família.

inédito, Dezembro|2015
Foto: Rémi Noel

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Só queria ser uma dessas pessoas


Só queria ser uma dessas pessoas
que ao fim do dia passeiam o cão pelo jardim
com um saco de plástico para recolher a merda.
Dessas que ninguém dúvida
que tem uma família feliz à espera.
E uma família feliz não é um prato
encomendado no chinês do bairro,
para aquecer no micro-ondas,
é uma mulher que quer envelhecer comigo
e que a cada noite me dá a mão e me leva
do sofá para a cama.

inédito, Novembro|2015
Foto: Couple, François Kollar, 1930

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

o meu sangue são a tua dor


Desfloras-me
desfloro-te
porque temos flores
um para o outro
o teu ritmo
em mim
sobre mim
tão novo
para mim
é muito antigo
é como o dos animais
ganho a minha virgindade
que te dou
e que não perco
sou sempre virgem
a minha dor
o meu sangue
são a tua dor
o teu sangue

Ar livre


 Anjo Ferozmente Humano - tradução de Miguel Filipe Mochila (língua morta 059)

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Uma espécie de perda


Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos,
utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos.
Fizemos. E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
( - o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um
apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a
sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
Não te perdi a ti,
perdi o mundo.

o tempo aprazado
(últimos poemas 1957-1967)
trad. judite berkemeier e joão barrento
assírio & alvim
1992
Via blog canal de poesia
foto: Dear Caffeine

manobras de outono


Não digo: isso foi ontem. Com insignificantes
trocos de Verão nos bolsos, estamos de novo deitados
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.
E a nós não nos é dada, como aos pássaros,
a retirada para o sul. À noite passam por nós
traineiras e gondolas, e por vezes
atinge-me um estilhaço de mármore impregnado de sonho,
onde a beleza me torna vulnerável, nos olhos.
Leio nos jornais muitas notícias - do frio
e suas consequências, de imprudentes e mortos,
de exilados, assassinos e meríades
de blocos de gelo, mas pouca coisa que me dê prazer.
E porque havia de dar? Ao pedinte que vem ao meio-dia
fecho-lhe a porta na cara, porque há paz
e podemos evitar essas cenas, mas não
o triste cair das folhas à chuva.
Vamos viajar! Debaixo dos ciprestes
ou de palmeiras ou nos laranjais, vamos
contemplar a preços reduzidos
inigualáveis pôr-do-sol! Vamos esquecer
as cartas ao dia de ontem, não respondidas!
O tempo faz milagres. Mas se chegar quando não nos convém,
com o bater da culpa - não estamos em casa.
Na cave do coração, desperto, encontro-me de novo
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Tarefas domésticas


Beijamo-nos como quem,
debaixo do mesmo tecto,
limpa o pó, aspira o chão,
desempoeira o corpo
carente de afecto.
Mas precisar não é pertencer,
há sempre uma cortina,
um tapete que pode esconder.
Precisar é como respirar,
é coisa de repetir sem pensar,
e nós corpos que não são do outro um,
corpos que depois do amor,
já não é amor e ainda lhe chamamos amor,
amargos por dentro, mudam de cama,
evitam a intimidade do sono
como cães sem dono, ao abandono.

Raquel Serejo Martins, inédito, Outubro|2015

Under a full moon madness


Incendiou a minha casa,
agora nada obstrui
a visão da lua.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

e eu vejo através da fechadura que o tempo continua escuro


não houve tempo para despedidas
dentro de casa há lâmpadas acesas
no final da tarde
quando a luz projecta sombras na parede
a casa é como uma paisagem
e eu vejo através da fechadura
que o tempo continua escuro

Seria mais feliz um momento ...


Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

terça-feira, 15 de setembro de 2015

loving you is like loving the dead


Onde quer que o encontres
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo – é teu,
para sempre, o meu nome.