sábado, 31 de dezembro de 2011

Orla Marítima

Para a Rute
O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios da vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

Ruy Belo in O Tempo da Suaves Raparigas e outros poeamas de Amor. Edição A&A (Gato Maltês)

2011 acaba hoje*

2011 acaba hoje. Finalmente, para mim. Chamem-lhe o que quiserem, eu chamo-lhe o ano da mudança, dos obstáculos, dos desafios... da montanha russa.
Aos que estiveram sempre lá; até logo. Aos amigos que me retribuem carinho e respeito; até amanhã. Aos que passam e sorriem; até para a semana. Aos que se esquecem muito rápido; até um dia. Aos que me desejam mal; boa sorte (porque é preciso para viverem com vós próprios).
Somos feitos de coisas boas e más. De coisas importantes, e não-tão-importantes. Eu cada vez mais prefiro as importantes e boas.
Cliché ou não, a verdade é que:
It's a new dawn, it's a new day, it's a new life for me.

Feliz 2012! I'm gonna love it!"

*texto de Li Alves

Feliz Ano Novo

Fall in light, fall in light
Fall in light, fall in light
Feel no shame for what you are
Feel no shame for what you are
Feel no shame for what you are
Feel no shame for what you are
Feel no shame for what you are
As you now are in your blood
Fall in light, fall in light

Feel no shame for what you are
Feel no shame for what you are
Feel it as a water fall
Fall in light, ooh
Fall in light, fall in light, fall in light
Fall in light, fall in light, fall in light
Grow in light

Stand absolved behind your electric chair, dancing
Stand absolved behind your electric chair, dancing
Past the sound within the sound
Past the voice within the voice

Leave your office
Run past your funeral
Leave your home, car
Leave your pulpit
Join us in the streets where we
Join us in the streets where we
Don't belong, don't belong
You and the stars
Throwing light

Fall, fall
Fall in light, fall in light. fall in light
Fall in light, fall in light fall in light
Grow in light.

Menina Dança #1

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Justo Jorge Pádron (2)

El espectro del ansia

¡Qué sensación de nunca se hace umbría en tus ojos,
qué sinuosa evidencia desolada,
de vacío sin fin ante la posesión
entregada, desnuda e imposible!

¿Quién puede consolar este deseo
que está perdiendo el ser entre lo vivo?

¿Eres tú, inocencia demoníaca,
en la inmisericorde tentación,
la que reclama aún este fuego de médulas?

La pasión ha secado su hontanar.
Ya eres el desterrado de tu cuerpo.
Te escarba y te persigue el espectro del ansia.
El tacto se extravía en los ciegos sentidos,
anhela su redoble y no lo encuentra.

Agotada la copa enhiesta de la llama
se apagaron las luces de la sangre,
y en el desasosiego del futuro,
esa voz sin piedad de tu exilio sentencia:
Sólo lo que has perdido es tu desierto.

Justo Jorge Pádron

Desde el fondo del vino una mujer me invoca...

Desde el fondo del vino una mujer me invoca
con un riesgo sinuoso. Su cuerpo se ilumina
como exaltada llama empañada de invierno,
como enterrada lluvia rompiendo sus latidos,
deshaciéndose en música envolvente,
tan desolada y bella, hasta cegarme.

El oro fascinado de su risa
me lleva hasta el delirio de celebrar su cuerpo.
Con su hechizo me invade desde el aura
de su rosa sombría, que absorbe en su corola
el absoluto tiempo que viví.

Y así, preso y errante, en su inquieto perfume
tibiamente lejano, me destierra en el vino
bajo la maldición de su recuerdo.

Poema retirado daqui.

Luiza Neto Jorge

O poema ensina a cair

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúptia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

in Poesia, Assírio & Alvim, 2001.

Boa noite :)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

F.S. Hill

Para a Rute
Numa manhã igual a tantas outras,
depois de redescobrir a vida
que me resta
sob a pele humedecida
pelo rio que me beija os pés,
vi-me partir pelo ralo
daquele navio ancorado
no cais do silêncio.
Foi uma partida feliz,
em espiral,
como num passo de ballet,
subtil e harmonioso,
sem falsas despedidas
ou promessas vãs.
Desapareci-me sem deixar rastro.
Nem mágoa.
Ficou apenas este corpo
pronto a habitar
e algumas memórias a decorar
as suas paredes transparentes.
Deixei, também, o gira-discos
a tocar,
para não me sentir tão só.
A canção permanece
ecoando sobre o meu colo.
Os dias vagueiam pela casa
e os livros morrem de tédio.
Nem uma dor.
Nada.
E mesmo assim é tanto.

Poema retirado daqui.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Peixe de Chernobil

À procura da minha Alma Mater

Monet - Gare de Saint Lazare

Exterior da gare de Saint Lazare, 1877.
Gare de Saint Lazare
Gare Saint Lazare: Chegada de um comboio, 1877.
 Gare Saint Lazare: Chegada de um comboio, 1877.
 Gare Saint Lazare
 Gare Saint Lazare: Chegada de um comboio, 1877

Sylvia Plath (2)

Espelho

Sou de prata e exacto. Não faço pré-julgamentos.
O que vejo engulo de imediato
Tal como é, sem me embaçar de amor ou desgosto.
Não sou cruel, simplesmente verídico —
O olho de um pequeno deus, de quatro cantos.
Reflicto todo o tempo sobre a parede em frente.
É rosa, manchada. Fitei-a tanto
Que a sinto parte do meu coração. Mas cede.
Faces e escuridão insistem em separar-nos.

Agora eu sou um lago. Uma mulher se encosta a mim,
Buscando na minha posse o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o brilho e a lua.
Vejo as suas costas e reflicto-as na íntegra.
Ela paga-me em choro e em agitação de mãos.
Eu sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã a sua face alterna com a escuridão.
Em mim se afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrível.

(Tradução inédita de Pedro Calouste)

Poema retirado daqui.

Sylvia Plath


Paizinho

Não serves, não serves,
Não serves mais, sapato preto
Em que eu vivi como um pé
Trinta anos, pobre e branca,
Mal me atrevendo a respirar ou atchim.

Paizinho, eu tive de matar-te,
Morreste antes que eu tivesse tempo,
Mármore pesado, saco repleto de Deus,
Estátua medonha de dedo grande cinzento
Do tamanho de uma foca de Frisco

E uma cabeça no Atlântico mais esquisito
Onde ele derrama o verde-feijão sobre o azul
Nas águas da lindíssima Nauset.
Eu costumava rezar para te recuperar
Ach, du.

Na língua alemã, na vila polaca
Aterradas pelo rolo
Das guerras, guerras, guerras.
Mas o nome do lugar é vulgar.
Diz o meu amigo polaco

Que há uma ou duas dúzias.
Assim nunca soube onde tu
Fixaste os pés, as tuas raízes,
Contigo nunca consegui falar.
A língua presa no maxilar.

Arame farpado.
Ich, ich, ich, ich,
Mal conseguia dizer.
Em qualquer alemão estavas espelhado.

E a linguagem porca
Uma máquina, uma máquina
Em vapores leva-me como judia.
Uma judia para Dachau, Auschwtiz, Belsen.
Comecei a falar como uma Judia.
Acho que é boa ideia ser Judia.

A neve do Tirol, as cervejas clarinhas de Viena
Não são muito puras ou genuínas
Com a minha angelical cigana, o meu destino estranho
E as minhas cartas de tarot, cartas de tarot
Eu posso ser um pouco Judia.

Sempre me provocaste medo,
Com a tua Luftwaffe, a tua conversa vazia.
E o teu bigode lavado
O olho ariano, muito azul.
Homem-panzer, homem-panzer, oh tu_

Não Deus, mas uma suástica.
Tão negra que nem céu.
Qualquer mulher adora um Fascista,
A bota na cara, o bruto
Bruto coração de um bruto da tua espécie.

Estás de pé na pedra, paizinho,
Na imagem que trago comigo,
Em vez do pé, o queixo partido,
Não menos canalha por isso, oh não
o homem que partiu em dois
o meu lindo e vermelho coração.

Eu tinha dez anos quando foi a enterrar.
Aos vinte anos, eu tentei morrer
E voltar, voltar, voltar para ti.
E até pensei que os ossos serviriam.

Mas não me deixaram,
Juntaram os meus bocados com cola.
E então eu soube o que fazer.
Fiz um modelo de ti,
Homem de preto, com um aspecto de Meinkampf

E o amor de tortura e torniquete.
E eu disse eu aceito, eu aceito
E então, paizinho, finalmente estou acabada.
Arranquei o telefone preto da ficha,
As vozes já não se arrastam até aqui.

Se matei um homem, matei dois_
O vampiro que me disse seres tu
E bebeu o meu sangue por um ano,
Sete anos, se queres saber
Paizinho, podes voltar para trás.

Há uma estaca no teu coração negro e gordo
E os homens da vila nunca gostaram de ti.
Eles dançam e espezinham-te.
Eles sempre souberam que eras tu.
Paizinho, paizinho, seu canalha, estou acabada.

(tradução inédita de Pedro Calouste)
Poema retirado daqui.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Algures em Itália

A Voz

Da tua voz
o corpo
o tempo já vencido
os dedos que me
vogam
nos cabelos
e os lábios que me
roçam pela boca
nesta mansa tontura
em nunca tê-los...
Meu amor
que quartos na memória
não ocupamos nós
se não partimos...
Mas porque assim te invento
e já te troco as horas
vou passando dos teus braços
que não sei
para o vácuo em que me deixas
se demoras
nesta mansa certeza que não vens.

in Poesia Reunida, D.Quixote, 2009.

Umberto Saba (2)

Folha

Sou como aquela folha – olha –
naquele ramo nu, que ainda um prodígio
mantém presa.

Nega-me, pois. De tal não entristeça
a bela idade que te dá essa cor ansiosa
e em mim só se demora num ímpeto infantil.

Dize-me tu adeus, se pela minha parte o não consigo.
Morrer é nada; perder-te é que é difícil.

(de Mediterranee, 1946)
Poema retirado daqui.

Umberto Saba

O Poeta

O poeta tem os seus dias
contados,
como todos os homens; mas quanto,
quanto mais variados!
As horas do dia e as quatro estações,
um tanto menos de sol ou mais de vento,
são o devaneio, o acompanhamento
sempre diverso para suas paixões,
sempre as mesmas; e o tempo que faz,
ao levantar-se, eis o grande acontecimento
do dia, sua alegria assim que desperta.
Nada como as luzes contrárias o alegra,
nada como os belos dias
movimentados,
e em longas histórias multidões imersas,
onde o azul e a tempestade duram pouco,
onde se alternam searas de infortúnio
e de vitória.
Com um rubro crepúsculo se entusiasma;
e com as nuvens muda de cor,
ainda que lhe não mude a alma.
O poeta tem os seus dias
contados,
como todos os homens; mas quanto,
quanto mais abençoados!

(de Trieste e una donna, 1910-1912)
Poema retirado daqui.

Alexandre Vargas


Penso, penso em ti, como é o teu nome de cabelos?
Como procuras a tua morada sob as pontes
ou espreitas nas chaminés da grande fábrica
que se ergue no teu castelo de colina?
Mas danças, mas não ris, eu pelo meu lado
já vendi a minha alma a Belzebu,
e as crateras dos teus olhos são tão belas...
muito mais do que um olhar se espelha nelas,
os espectros que assim descem das estrelas
lá os vejo a bailar, a afeição
que um dia a mim também me deu a mão...

img/ Gregory Maiofis
Poema retirado daqui.

Jean Genet


E a tua ferida, onde está?

Pergunto onde fica,
em que lugar se oculta a ferida secreta
para onde foge todo o homem
à procura de refúgio
se lhe tocam no orgulho, se lho ferem?

Esta ferida
— que fica assim transformada em foro íntimo —
é que ele vai dilatar, vai preencher.

Sabe encontrá-la, todo o homem,
ao ponto de ele próprio ser a ferida,
uma espécie de secreto
e doloroso coração.

[...]
trad./Aníbal Fernandes
Poema retirado daqui.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Lobe U (2)

Para a minha Matilde.

Lobe U


Doce Matilde, hoje começamos uma vida nova, sempre juntos.
Esta é para ti, o Deivid Bali que tanto gostas de ouvir no carro.
Lobe U

Straight to you

All the towers of ivory are crumbling
And the swallows have sharpened their beaks
This is the time of our great undoing
This is the time that I'll come running
Straight to you
For I am captured
Straight to you
For I am captured
One more time

The light in our window is fading
The candle gutters on the ledge
Well now sorrow, it comes a-stealing
And I'll cry, girl, but I'll come a-running
Straight to you
For I am captured
Straight to you
For I am captured
Once again

Gone are the days of rainbows
Gone are the nights of swinging from the stars
For the sea will swallow up the mountains
And the sky will throw thunder-bolts and sparks
Straight at you
But I'll come a-running
Straight to you
But I'll come a-running
One more time

Heaven has denied us its kingdom
The saints are drunk howling at the moon
The chariots of angels are colliding
Well, I'll run, babe, but I'll come running
Straight to you
For I am captured
Straight to you
For I am captured
One more time

Pedro Mexia (2)

Para MP
As Gavetas

Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.

in Menos por Menos, D.Quixote, 2011.

Pedro Mexia

A Balada do Café Triste

Comprei-lhe A Balada do Café Triste
depois de quase ter passado por ladrão
de livros, mexendo-lhes sem olhar
para eles enquanto rondava de todos
os lados aqueles olhos que se viam
de qualquer ponto da feira, mesmo
se houvesse obstáculos o verde
atravessava-os, o verde tornava tudo
verde entre mim e ela, e no meio
dessa cor unânime a rapariga
era ainda mais. Pouco importa,
leitor, se houve depois alguma história,
entre homem e mulher não se passa
muito mais: uns olhos que de repente
são necessários e pelos quais passamos
por ladrões de livros ou pior.
Nunca li  A Balada do Café Triste.

in Menos por Menos, D.Quixote, 2011.

Filipa Leal (2)

Se ao menos a morte

Ela morria tantas vezes
em tiroteios à porta de casa
que já não sabia morrer para sempre
assim
de uma vez só.
Se ao menos se marcasse um dia
para a morte, uma hora certa
como no dentista
que apesar de tudo
nos faz esperar
onde apesar de tudo
não sabemos quando será a nossa vez.
Se ao menos a morte tivesse revistas
e gente na sala de espera
não estaríamos tão sós
tão vivos nessa ideia final
nesse desconforto.
Poríamos o nome na lista
quando estivéssemos prontos
sabendo que seria fácil desmarcar
marcar para outro dia
ou simplesmente
não comparecer.
Depois, ficaríamos com a dor,
com o terror
de passar sequer naquela rua
como ela à porta de casa.
Ela que morria tantas vezes
porque morria de medo de morrer.


in Cidade Líquida e Outras Texturas, Deriva Editora, 2006.
Via blog Clube de leitores.

Filipa Leal

Nos dias tristes não se fala de aves


Nos dias tristes não se fala de aves.
Liga-se aos amigos e eles não estão
e depois pede-se lume na rua
como quem pede um coração
novinho em folha.

Nos dias tristes é Inverno
e anda-se ao frio de cigarro na mão
a queimar o vento e diz-se
- bom dia!
às pessoas que passam
depois de já terem passado
e de não termos reparado nisso.

Nos dias tristes fala-se sozinho
e há sempre uma ave que pousa
no cimo das coisas
em vez de nos pousar no coração
e não fala connosco.

in Cidade Líquida e Outras Texturas, 2006.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Paixão antiga

Herberto Helder

O Amor em Visita

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.

Ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
ã tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeia o ardor das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Estontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distãncia amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza partida,
os ombros violados,
o sangue penetrado de paredes nuas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
se transfiguram, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em tua velada beleza

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música noturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstrato,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
por teu poder angélico e fechado.

Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.
Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.

Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma idéia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingênua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa gratidão.

Felizmente estás na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua pungência e castidade.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite,
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de angústia e prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na idéia
e o livro no espaço triste.

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo,
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso deserto, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto,
- no amor mais impossível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Corre em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde estará o mar? Aves bêbadas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E eu peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Ó amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas como uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

in O Amor em Visita, 1958.

You came on like a punch in the heart # 2

Aos 17 descobri o Iggy Pop, o Lou Reed e os Pulp, nunca consumi heroína, valeu a pena!

William Wordsworth (2)

Quando ficamos demasiado tempo separados
De nós mesmos pela pressa do mundo, e desanimados,
Enfastiados com o que nele existe e cansados dos seus prazeres,
Sentimos como é agradável e amena a Solidão;
Como é forte uma simples imagem do seu poder,
Maior ainda quando se agrava no espírito
Como se fosse um alvo apropriado - um eremita
Que fica oculto no seio do deserto;

in Prelúdio, edição Relógio D'Água, 2011.

Manuel António Pina (3)

Para a Rute
O Quarto

Quem te pôs a mão no ombro,
a faca que te atravessou o coração,
são feridas alheias, talvez algo que leste;
entretanto partiste
para lugares menos iluminados
e corações menos vulneráveis,
pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui
se já cá não estás.
A hora havia de chegar em que
nos perderíamos um do outro.
E acabaríamos necessariamente assim,
mortos inventariando mortos.
Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.
Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.

in Como se Desenha uma Casa, edição Assírio & Alvim, 2011]

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

José Tolentino Mendonça

Quando se viaja sozinho
pelas imagens que perduram
as evocações ganham um modo tão real
A mancha ténue dos arbustos
indica um caminho para o regresso
que nunca há
o mar ficou de repente perto
sobre esta praia travámos lutas
para as quais só muito depois
encontramos um motivo
era à pedrada que nos defendíamos
do riso mais inocente
ou de um amor

Mas aquilo que nunca esquecemos
deixa de pertencer-nos e nem notamos

Estamos sós com a noite
para salvar um coração

Bénédicte Houart

no princípio era o verbo e
o verbo fez-se tu
carne que saboreio
ao acaso do tempo e
que nunca me sacia
ao acaso da vida
(inédito - Julho de 2010)


sou só uma menina
magoada por amor à tradição
eu cá disso nada sei
gosto de brincar com as minhas bonecas
no chão de terra batida onde as penteio
eu cá disso sei quase tudo
um dia, dizem, pertencerei a um homem
a quem chamarei de marido, mas
nunca com ele brincarei como
quando fui feliz antes de
para sempre o sexo me açaimarem
de ninguém mulher tornarem-me
eu cá disso não saberei
sou uma só menina de entre todas as outras outrora
(inédito - Julho de 2010)

William Wordsworth

Neste triste deserto de esperanças destruídas,
Se, na diferença e apatia
E cruéis exultações quando tantos homens bons,
Sem sabermos como, soçobram
No egoísmo que se disfarça com nomes sedutores
De paz, tranquilidade e amor familiar,
Mas insidiosamente misturado com escárnios
A respeito de espíritos visionários, se nestes tempos
De abandono e desânimo, eu, todavia,
Não desesperar da nossa natureza, mas conservar
Uma crença mais que romana, uma fé
Inabalável, que é em todos os infortúnios o meu apoio,
A bênção da minha vida - este dom é vosso,
Ventos e cascatas sonoras! É vosso,
Montanhas! Teu, ó Natureza! Tu alimentaste
As minhas altas meditações; e é só em ti
Que descubro para o nosso coração ansioso
Um princípio de alegria sempre inabalável
E da mais pura paixão.
in O Prelúdio, trad. Maria de Lourdes Guimarães, edição Relógio D'Água.

Suzanne & I

Disco do Ano!

O Amor

Noutro mundo

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Coração de Laranja

Balada do Café Triste

O frio voltara, o Inverno envolvia aterra e a noite descia antes do último turno terminar o trabalho na fábrica. As crianças dormiam vestidas, as mulheres arregaçavam as saias para se aquecerem à lareira. Depois da chuva, a lama dos caminhos transformava-se em sulcos gelados, a luz dos candeeiros tremia no interior das casas e os pessegueiros tinham ramos nus e esqueléticos.
Durante as silenciosas e sombrias noites de Inverno, o café era o centro agradável para onde todos convergiam. As luzes brilhavam com tanta intensidade que podiam ser vistas a um quarto de milha. O enorme fogão de ferro fundido, ao fundo da sala, sussurrava dando estalidos, até ficar rubro. Miss Amélia arranjara cortinas vermelhas para as janelas e comprara a um caixeiro-viajante um braçado enorme de rosas de papel que pareciam naturais.
Mas não eram só as decorações e a claridade que faziam do café aquilo que era. Havia uma razão profunda para o café ser tão enaltecido. E esta razão profunda tinha que ver com um determinado orgulho antes desconhecido. Para compreender este novo sentimento é preciso não esquecer o pouco valor que se atribui à vida humana.
in Balada do Café Triste, Carson Mccullers, edição Relógio D'Água.

Jorge Roque

"Quando me levanto, não sei se estou doente ou se é só a solidão. Foram estas as tuas palavras ao balcão, entre as pessoas que entravam e saíam, e nenhuma reparava que havia alguém ali a gritar uma dor que de tão funda não se ouvia. Mal te conheço, mas depois disto é como se nos conhecêssemos. Talvez um dia use esse batom vermelho, esses brincos dourados de metal barato a coroar o penteado de cabeleireiro, e no sorriso a mesma largura triste de uma distância que jamais se alcançará (será ela que nos une uma vez mais). Antes disso, vou falar-te das minhas manhãs quando me levanto. Um peso no corpo, uma morte no olhar, corredor estreito por onde os passos avançam em direcção ao copo onde dissolvo a vitamina C em água. Logo o cigarro, a primeira baforada, como se uma esperança, embora uma esperança de nada. Seguir para o banho, copo e cigarro, o espelho em frente, cercado por azulejos brancos macabros. O resto já sabes, não preciso dizê-lo. Somos assim dois, eu e tu. Guarda segredo.

Telhados de Vidro nº14, edição Averno

Beleza

É quando se perde a predisposição para a beleza que a vida se esgota. Quem não se comove, perdeu o sentido, e os seus dias converteram-se num infindável e angustiante exercício de espera.
MAV do blog KID A

João Ricardo Lopes (2) Inédito

para o Bruno Malheiro
as cidades que eu amei e amo
encontro-as ainda no cosido do caderno
de bolso, integrais e revisitáveis

nada permanece, é o que ensinam
sempre os poetas, e porém
a memória aí fica, entre o elástico
e os bilhetes de avião, entre os mapas
e linhas voláteis traçadas a esmo
no meio do mundo

nem tudo se ganha ou se perde, como
quis Lavoisier, mas talvez tudo se
transforme, como quis Lavoisier.
uma questão de cadernos, julgo eu

Dezembro 2011 (via blog Dias Desiguais)

Music to make love to your old lady

domingo, 18 de dezembro de 2011

I was a fool baby!

 

Madrigal

gosto quando pões a quinta porque me tocas na perna com o nó dos dedos.

in Contra a Manhã Burra, edição Mariposa Azual, 2009.

a subjectividade é a verdade #15

Post fanado daqui.

Último Cigarro

o vinho é branco a tarde cai o dia avança no vento
na boca acorda o último cigarro o poema segue o risco
a claríssima influência

é este o incêndio da tarde o fim do almoço
a violência dos pássaros as crianças dormem a sesta
reclusas na sombra azul dos quartos

mãos sem sentido
arroz na folha de videira muro caiado de branco
e roseiras

gastronomias inexplicáveis contêm a vida e os pátios
aquela noite grega que não soubemos redigir
vespas bebendo da boca das torneiras

escrevo o poema que não lerás nunca
sobre a toalha de plástico da mesa suja
de azeite

a mão esquecida na vírgula acesa do cigarro
a minha solidão vincada a cotovelos no padrão da toalha
as crianças dormindo na

nitidez esquecida da telefonia

in Contra a Manhã Burra, edição Mariposa Azual, 2009.

Justas Partilhas + Com Paixão e Hipocondria

Para MP
brutalmente frugal o que levaste;
a mais sobraram umas falhas
falta luz digo falta espaço
disseste como se fora
o que sempre te faltou mas
o tempo igualmente se esgotou
e não há penalização
por tudo
nem se compensam as manchas
do nada
que resta e acastanhece na casa
e que me não me cabe e
se dantes coube
eu soube dissolver

---------------------------------------------

Confortamo-nos com histórias laterais,
evitamos o toque, há risco de contágio;
por mais que preservemos a franqueza
passou o estágio já da frontal alegria:
estamos bem, obrigada, embora aquém
de antes - entretanto admitimos não
saber, e enquanto resta isso indefinido,
mesmo com luvas, pinças de parafina,
não sondamos mais, sob pena de crescer
um quisto nesse incisivo sítio onde
achámos sem tacto que menos doía.

And Sure in Language Strange

É noite nos meus olhos.
E nos teus ainda
se sente a água?
Cego vou para teus braços
e não sei quem és.
De amor por ti
nunca direi
ou se já cai a flor
da amendoeira. Nos mares
do rio a que me deito
navega o barco
dos fantasmas, eu por eles
quis crianças
e os outros corpos todos.
Nos meus olhos
é a clara noite, a água
sobe, amarras
esticam e protegem.
Teus olhos dizem
que estou a chegar
e não se importam
do que vou querer,
do que te falo. Afasto
os arbustos, vou
em pressa, prepara-me
o gesto de receber, abre
o teu vestido, a boca
sobre os pulsos
já a sinto. É a noite
toda nos meus olhos,
silvados que quebrei, domínios
por onde venci
a infiel maneira
de existir. Assim ergues
a pequena verdade, de amor
por ti nunca direi
como te quero.

in Para Não Falar, Moraes editora, 1986.

É tarde, muito tarde da noite



É tarde, muito tarde da noite,
trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente,
voltei, ouço música, estou terrivelmente cansado.
Exactamente terrivelmente com a sua banalidade
é o que pode dar a medida do meu cansaço.
Como estou cansado. De ter trabalhado muito,
ter feito um grande esforço para depois
interessar-me por outras pessoas
quando estou cansado demais para me interessarem as pessoas.

E é tarde, devia ter-me deitado mais cedo,
há muito que devera estar a dormir.
Mas estou acordado com o meu cansaço e a ouvir música.
Desfeito de cansaço,incapaz de pensar, incapaz de olhar,
totalmente incapaz até de repousar à força de cansaço.
Um cansaço terrível
da vida, das pessoas, de mim, de tudo.
E fumo cigarro após cigarro no desespero
de estar tão cansado. E ouço música
(por sinal a sonata para violino e piano de César Franck,
e depois os Wesendonck Lieder)
num puro cansaço de dissolver-me
como Brunhilda ou como Isoldano que não aceitarei nunca,
l' amor che muove il sole e l' altre stelle.
Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado,
e o outro que não ama, apenas queima e passa ,
e de cuja dissolução no espaço e no tempo em que vivo
estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas
que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno.

Eu estou cansado de não me dissolver
continuamente em cada instante da vida,
ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo.
Qu' ai-je à faire de l' eternel? I live here.
Non abbiamo confusion. E aqui é que morrerei
danado de cansaço, como hoje estou
tão terrivelmente cansado.

Jorge de Sena

Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras.

in Post Scriptum, 

O Meu Amor

António Ramos Rosa

A nudez da palavra que te despe.
Que treme, esquiva.
Com os olhos dela te quero ver,
que te não vejo.
Boca na boca através de que boca
posso eu abrir-te e ver-te?
É meu receio que escreve e não o gosto
do sol de ver-te?
Todo o espaço dou ao espelho vivo
e do vazio te escuto.
Silêncio de vertigem, pausa, côncavo
de onde nasces, morres, brilhas, branca?
És palavra ou és corpo unido em nada?
É de mim que nasces ou do mundo solta?
Amorosa confusão, te perco e te acho,
à beira de nasceres tua boca toco
e o beijo é já perder-te.

in Nos Seus Olhos de Silêncio, 1970

Interlúdio

As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.

Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente - claro muro
sem coisas escritas.

Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.

Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.

Fico ao teu lado.

Sophia de Mello Breyner Andersen (2)

A memória de ti calma e antiga
Habita os meus caminhos solitários
Enquanto o acaso vão me oferece os vários
Rostos da hora inimiga

Nem terror nem lágrimas nem tempo
Me separarão de ti
Que moras para além do vento.

 in Mar Novo, 1958.

Manuel António Pina (2)

A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

in Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância, edição Afrontamento, 1992.

Não o sonho

Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.

 in Atropelamento e Fuga, edição ASA, 2001

sábado, 17 de dezembro de 2011

Inédito

para o Bruno e para a Marta
amo as pontes pobres, aquelas que nos servem
de passagem e recato, aquelas onde se demoram
os olhos um pouco somente — e se morrem, o fazem
num honesto cair de pedra, sem exclamação. outras
pontes sabem a insolência — e se nos guardam das
águas, retêm também as retinas indefesas, presas
ao ouro e ao escândalo, como se qualquer travessia
pudesse enganar-se no tempo e não ser da subs-
tância própria de todo o animal corrupto

Paris, Abril de 2011

Anjo do desespero

Eu sou o anjo do desespero. Com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento, o gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. A minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com que o morto abre o caixão. Eu sou aquele que há-de ser. O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo de amanhã.

in O Anjo do Desespero, edição Relógio D'Água, 1997.

Almost Blue

Entre tu e eu sempre se opõe

  Entre tu e eu sempre se opõe
por muito que tentemos ignorá-lo,
o antigo costume se dispõe:
<<todo o estranho ardor há que acalmá-lo>>

  Entre tu e eu sempre se impõe
a ordem: << Aquele, aniquilá-lo!>>
Assim o nosso amor já pressupõe
a fogueira que virá apagá-lo.

  As indomináveis escalas da injúria,
acosso sem fim, morte e olvido,
prisões, fogueiras, isso é amar-te.

  Mas o terrível não é a tediosa fúria
que em cinzas nos tem convertido,
o terrível é saber se poderei achar-te.

in Poesia Cubana Contemporânea - Dez Poetas, edição Antígona, 2009.

Problemas da Linguagem

Para  MP
Se fosse a ti
não teria esperado tanto.

Esperavas que eu fosse
ao encontro onde falarias da palavra dor.
De lá para cá
(o tempo corre, querida,
o tempo é um porco veloz
que cruza o bosque da vida!)
passaram-se muitas coisas.

Entre elas
   a leitura de Proust
   (Se me visses!
   Sou mais cínico mais
   gordo e
   caminho meio lerdo
   como uma retrospectiva da morte. )

Se fosse a ti não teria esperado tanto
e teria ido com aquele que te dizia
com uma saudável economia de linguagem:
casa-te comigo.

(Agora esperas-me. E eu
não saberia dizer-te nada
e tu
só saberias falar
e falar
da palavra dor.)
in Poesia Cubana Contemporânea - Dez Poetas, edição Antígona, 2009.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Can't Bee


Can't bee your lover
Can't bee that loveless
Can't bee that healing rope,
or anything
Can't bee without you,
the one or the other
Can't even bee what you are for me

Can't even bee your final solution
I hope I was your final pollution

Can't bee your motion
Can't bee that frozen
Can't bee those limbs you miss,
or everything
Can't bee the apocalypse,
one or the other
Can't live your life
for you and for me

Can't even bee your final polution
I wish I was the heartbeat of your destruction

Can't bee like you
Can't bee that hateful
Can't bee that cross to bridge,
or just that thing
Can't bee the insect stroke,
the distracted love
Don't dare to bee
what you are for me

Can't even bee your absolution
I pace at the rhythm of your consumption

Pequenos crimes entre amigos

Se um dia me pedires,
juro que te empresto
o meu coração, tal como
guardei na boca o pequeno deus
que te trazia tão curioso.
A sério. Deixo-te tocar nele,
sentir-lhe o peso, atirá-lo
contra a parede para depois
apanhares e retirares a pele
de pêssego demasiado maduro.

Podes até queimá-lo -
com cuidado, por favor-
quando estiver mais frio;
ou enterrares os restos debaixo
das estrelícias, de propósito
por saberes que não as suporto.
Em troca, promete-me apenas
que depois me deixas fugir
para saber como é isso de
passar o resto da vida desembaraçada
finalmente desse peso morto.

in Revista Piolho nº6, Edições Mortas, 2011.

O poder do livro!

Via o blog Clube de Leitores.

Onde comprar bons filmes em Braga?

Neste Natal ofereça bom cinema independente, todo o catálogo disponível da Medeia Filmes / Atalanta Filmes  / Clap Filmes, presente na livraria Capítulos Soltos em Braga.

Para ti, falo



Para ti, falo. O eco. Os aviões dos jogos de pé-coxinho
transmitidos. A boa nova brilha, hoje. Anuncio o dom
do desejo, o mar sem trajecto, a boca.

Para ti, a indisciplina dos cumes de cabeça de égua, o
relinchar da neve, além, inaudito.

Para ti, amor exasperado, as verdades primeiras, o prazo
dado às pedras empoleiradas.

Para ti, só para ti, o luto dos círios, o hino ao rochedo,
a carta inviolada do sinal.
*
in A Obscura Palavra do Deserto - Uma antologia, edição Cotovia 1991.

Glorioso

Uma Voz na Pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

  in Facilidade do Ar, edição Caminho,1990.

Feliz Natal!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Rui Caeiro (2)

Um poema de amor que ninguém
tivesse feito e só um merecesse
e só o outro entendesse

E aí estaria ele o amor
em estado de pura nudez
litográfica à século das luzes

in O Quarto Azul e Outros Poemas, edição Letra Livre, 2011.

Carlos Alberto Machado (2)

Olho pela janela as flores
que anunciam a primavera
mas é mentira evidente
morreste
e isso é mais parecido com um inverno
as flores primaveris
são para adornar a tua campa
são a memória do meu espanto
os pés sobre a terra húmida
pelo silêncio calado.

in A Realidade Inclinada, Edição Averno, 2003.

Carlos Alberto Machado

O meu corpo enrosca-se na noite do teu corpo
adormecidas as minhas palavras ondulam na tua boca
da tua respiração soltam-se borboletas azuis
acordado sigo ainda os seus invisíveis trajectos
é neles que leio as palavras esquecidas na noite
uso cautelosamente o antigo saber divinatório
enquanto danças sobre a terra vestida de lavanda.

in A Realidade Inclinada, Edição Averno, 2003.

The Wilhelm Scream

Rui Caeiro

Quando a manhã se insinua
e os corpos, obstinados, não querem
e não deixam e mais e mais
se escondem dentro da cama até
ao sufoco bom do fim da noite...

Coisas que só sabemos de ouvir dizer
manhãs assim não o conheceremos nunca
já que temos o amor, o desejo e mais
nada, temos pouco tempo e mais nada
e depois disso ainda a fome

que sempre nos sobra ou sobrevém
Quanto ao mais - dormir, acordar
juntos, passear à beira-mar, envelhecer
juntos como faz toda a gente
- ora esquece mas é.

in O Quarto Azul e Outros Poemas, edição Letra Livre, 2011.

O mural mais bonito da cidade


Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill

Situado em Braga, numa transversal à livraria Capítulos Soltos.

Paisagens Originais

Viajar pela infância.
Influência para este post: Paisagens Originais, Olivier Rolin, Edições ASA, 2000.

Luís Quintais

Para a Rute

O que te surpreende quando partes.
O edifício em que trabalhaste a vida inteira,
casa de pedra e silêncios reiterados
por portas que se fechavam, batiam
a passagem das horas e o acabar dos ofícios.
O edifício onde trabalhaste a vida inteira
depois do comércio de palavras e objectos
e alegrias repartidas, depois do júbilo repartido,
depois da juventude.
O edifício frio, pedra e vento, o edifício
de mágoa e janelas entreabertas para o nada.
O edifício onde trabalhaste a vida inteira,
onde te cruzaste com anónimos destinos,
onde se esquecia a amizade e se murava
o rosto com máscara de cortesia,
onde por delicadeza abandonaste toda a esperança
e com sensatez esperaste o fim, o fim
que te apaixonava, a desaparição sem indício
ou complacência ou ruído de portas que se fechavam,
batiam, e continuam a bater.
O edifício onde trabalhaste a vida inteira,
esperando que o mínimo gesto vezes sem conta repetido
até ao improvável te transportasse,
onde este gesto, este preciso gesto pelo voo quebrado,
da terra eliminasse a deriva, o desespero.
O edifício onde trabalhaste a vida inteira,
onde acreditaste em milagres quando não havia
em que acreditar,
onde por vontade alheia tão docilmente aprendida
domesticaste o movimento,
para, parado, chorares a Ítaca da Ítaca,
aí, onde a fabulosa árvore
era miragem apenas.

O edifício onde trabalhaste a vida inteira.
O edifício que, dobrado o escuro tempo, és.

S/ título, Luís Quintais, in Verso Antigo, Edição Cotovia, 2001.

Saudade

Espero por ti no fim do mundo
ou no princípio dele,
enquanto as sementes secam ao sol
que não nasce
e as palavras se perdem
num verso sem peso nem medida.

És a que não chega:
promessa do amor que enche
os espelhos, brilho
da treva que assombra
o cristal

E quando olho pela janela,
como se viesses do fundo da rua,
só a tarde dobra essa esquina
que te viu partir
com os olhos húmidos da manhã nua.

Sombra, cinza e ruínas
chegam a cada primavera: mas tu
só voltas donde não sei,
quando não espero
e onde não estou.

Nuno Júdice in Poesia Reunida 1967 - 2000

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Supermercado

Para Ana Paula Inácio
Tenho 35 anos e sei finalmente o que
quero. Basta olhar para o cesto
de compras: bolachas Leibniz, papel
higiénico Renova, leite com chocolate
Agros e, claro, uma garrafa de Famous
Grouse e pelo menos seis latas de Superbock.
Discos já tenho que cheguem, por muito
que me desminta, e não viverei o suficiente
para ler todos os livros que me ocuparam a casa.

É um bocadinho banal, eu sei, mas é a minha
prestação diária enquanto consumidor, o meu fado
simples e enxuto, quase isento de lágrimas & remorsos.
Acordo para almoçar no Doce Lindo (ou Doce Belo, ainda
não houve rotina que me fizesse decorar o nome),
passo pelo supermercado, onde desejo ou nem por isso
todas as ternas e voláteis isildas deste mundo perfeito
- e volto a subir devagar as escadas de madeira romba.

Só muitas horas depois, quando as luzes
me garantem que o bairro inteiro dorme,
escrevo poemas como este, versos em que
inutilmente vos digo sou um homem feliz,
un roseau pensant, o mais belo cadáver de Lisboa.

in Intermezzi op.25, edição Opera Omnia, Maio 2009

September Song

Ouve, pelo começo de Setembro,
o clamor e a melancolia
deste mar atravessando a tua vida,
as páginas de um livro por abrir.

Ouve como quem vê,
sobre as falésias deste mês abrupto,
alguém que te celebra
muito depois das palavras.

É tão difícil escrever um poema
que não fale da morte.

in Intermezzi op.25, edição Opera Omnia, Maio 2009

Tribute pour Camus & Gainsbourg



terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A Rapariga e a Praia

Uma rapariga vai como uma espiga
São cor de areia suas pernas finas
Seu íris é azul verde e cinzento

Uma rapariga vai como uma espiga
Carnal e cereal intacta cerrada
Mas nela enterra sua faca o vento

E tudo espalha com as mãos o vento

 in Mar - Antologia

Fons vitae

As confidências demoram-se no céu da boca
como as nuvens lentas do Outono. Sopro-as,
para que o céu se limpe e apenas uma névoa vaga
se cole ao que me queres dizer; mas
encostas-me os lábios ao ouvido e tu, sim,
é que me contas que céu é este, e de onde
vêm as nuvens que o cobrem. Sentimentos,
emoções, paixões, interpõem-se entre
cada frase. Nem há outros assuntos
quando nos encontramos, e me começas a falar,
como se fosse o coração a única
fonte do que dizemos.

 in Poesia Reunida 1967 - 2000, D.Quixote.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Amor & Leitura


«Há palavras que nos beijam / como se tivessem boca»
Alexandre O'Neill

Álvaro de Campos

"Ah, não estar parado nem a andar,
Não estar deitado nem de pé,
Nem acordado nem a dormir,
Nem aqui nem noutro ponto qualquer,
Resolver a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas..."

 in Passagem das horas

sábado, 10 de dezembro de 2011

XI

Dar nome à dor é tão frívolo
quanto necessário para a podermos olhar de frente,
afastá-la e talvez odiá-la.

Esta dor de ausência tem por nome
um substantivo que não consigo pronunciar
e por apelidos intermináveis cadeias
de letras.

Suponho que todos precisamos de erradicar
a dor, mas agora que sei o seu nome
conseguirei pelo menos expulsá-la com um só grito.

trad. por Manuel de Freitas, in Telhados de Vidro nº 15, Junho de 2011, Edições Averno.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

You came on like a punch in the heart # 1

Somewhere Beneath This Sky

Poço

Aconteceu, ponto final.Nunca hà só uma razão
para estas coisas. Todos vamos secando por dentro.
Mas talvez possamos consertar o poço e salvar
o campo, com alguma lucidez e paz de espírito.

A praia, o clube, o parque de Santa Marta,
o salão animatógrafo, o coreto
duas vezes por semana. A época de banhos
ainda não acabou, excepto algures dentro de nós.

E nem se trata do que aconteceu no passado
ou do do que pensamos que pode acontecer no futuro.
...
Pelo menos acredito nas tuas intenções. As nossas mentiras são velhas,

sabemos dizê-las bem.

in Quem Diremos Nós Que Viva, Edições Averno.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

honey bee

Tijuana

No canto da sala recordo-me de Lila Downs, mexicana trintona que canta nos botecos de seu país amores perdidos (amores perros!) com a frescura de todos eles terem partido na noite anterior. À minha frente uma mulher que apesar de não ter o encanto de Lila canta com angústia dores semelhantes em ritmo lento e compassado do bolero uma apologia de dor à espera que se esbata contra o meu peito à procura de abrigo.
Fumo um cigarro, já perdi a conta aos que já passaram, sou iluminado por uma dezena de candeeiros unicolores da loja dos 300, ainda que haja breu suficiente para dar elegância à decadência de emoções. 
Estou em Tijuana ou pelo menos quero acreditar nisso, talvez esteja a um oceano de distância. Eu, a mulher e mais dois vultos enamorados preenchemos a sala, os vultos não pertencem á minha Tijuana, os enamorados não partilham as dores, eu e a mulher sufocamo-nos com a nossa solidão. O cortejo de sons quentes se esfuma e volto para casa, a minha comoção ficou naquela sala, outros amores ficaram naquela sala.
Chego a casa, vou de encontro à minha bela mulher, beijo-a delicadamente na boca e renovo-lhe os meus votos de amor eterno com a esperança de que quando voltar aquela sala não partilhe mais amores perdidos com a senhora que me lembra Tijuana.

Bruno M.

Ana Teresa Pereira



para Daphne du Maurier
Fiery the Angels rose, and as they rose deep under roll’d 
Around their shores (…)
Willam Blake

La Vague (Renoir)

Tributo ao Verão.