quarta-feira, 23 de maio de 2012

como joyce em trieste



Desço de carro pela margem do Arno,
com o livro de alemão sobre os joelhos, como
Joyce em Trieste, atravesso distraído
zonas de peões, vejo os meus ombros
em todas as montras, e é tudo, nem
danças nas praças, nem raparigas
com vestidos de seda, nos arbustos, Ulisses,
com ar de parvo, sorri embaraçado,
de que me servem as palavras?, tusso,
agradeço, isto não vale um chocolate,
e entro num café para morrer.


in como se fosse a minha vida, edição Quetzal, 1994.
Via Canal de Poesia.

terça-feira, 22 de maio de 2012

s/título

Sentir a tua pele contra a minha,
os teus lábios
nos meus,
a tua pálpebra na minha boca
fundidos no futuro que nos aguarda.

não houve tempo antes de nós

quando te beijo
é só a forma dos meus lábios dizerem que sim
e de os teus lábios dizerem que não
que não houve tempo antes de nós

Não entres tão depressa nessa noite escura


Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.

Não partas já


Não partas já. Fica até onde a noite se dobra
para o lado da cama e o silêncio recorta
as margens do tempo. É aí que os livros
começam devagar e as cores nos cegam
e as mãos fazem de norte na viagem. Parte apenas

quando a manhã se ferir nos espelhos do quarto
em estilhaços de luz; e um feixe de poeiras
rasgar as janelas como uma ave desabrida.
Alguém murmurará então o teu nome, vagamente,
como a gastar os dedos na derradeira página.

E então, sim, parte, para que outra história se
invente mais tarde, quando os pássaros gritarem
à primeira lua e os gatos se deitarem sobre
o muro, de olhos acesos, fingindo que perguntam.

Via Inês Espada (obrigado)

Ven a dormir conmigo


segunda-feira, 21 de maio de 2012

Mis manos inventan otro cuerpo a tu cuerpo

Mis manos 
abren las cortinas de tu ser 
te visten con otra desnudez 
descubren los cuerpos de tu cuerpo 
Mis manos 
inventan otro cuerpo a tu cuerpo 

Eu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa

Brincas todos os dias com a luz do universo.
Subtil visitadora, chegas na flor e na água.
És mais do que a pequena cabeça branca que aperto
como um cacho entre as mãos todos os dias.

Com ninguém te pareces desde que eu te amo.
Deixa-me estender-te entre grinaldas amarelas.
Quem escreve o teu nome com letras de fumo entre as estrelas do sul?
Ah deixa-me lembrar como eras então, quando ainda não existias.

Subitamente o vento uiva e bate à minha janela fechada.
O céu é uma rede coalhada de peixes sombrios.
Aqui vêm soprar todos os ventos, todos.
Aqui despe-se a chuva.

Passam fugindo os pássaros.
O vento. O vento.

Eu só posso lutar contra a força dos homens.
O temporal amontoa folhas escuras 
e
solta todos os barcos que esta noite amarraram ao céu.

Tu estás aqui. Ah tu não foges.
Tu responder-me-ás até ao último grito.
Enrola-te a meu lado como se tivesses medo.
Porém mais que uma vez correu uma sombra estranha pelos teus olhos.

Agora, agora também, pequena, trazes-me madressilva,
e tens até os seios perfumados. 

Enquanto o vento triste galopa matando borboletas
eu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa.

O que te haverá doído acostumares-te a mim,
à minha alma selvagem e só, ao meu nome que todos escorraçam.
Vimos arder tantas vezes a estrela d’alva beijando-nos os olhos
e sobre as nossas cabeças destorcerem-se os crepúsculos em leques rodopiantes.

As minhas palavras choveram sobre ti acariciando-te.
Amei desde há que tempo o teu corpo de nácar moreno.
Creio-te mesmo dona do universo.
Vou trazer-te das montanhas flores alegres,
copihues, 
avelãs escuras, e cestos silvestres de beijos.
Quero fazer contigo
o que a primavera faz com as cerejeiras.

you speak my language


(...)
Ninguém dorme neste quarto sem
o sonho de uma língua comum.

Entre tus brazos


Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos olas
y la noche es océano.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos piedras
y la noche desierto.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces raíces
en la noche enlazadas.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces navajas
y la noche relámpago.

Dos cuerpos frente a frente
son dos astros que caen
en un cielo vacío.

domingo, 13 de maio de 2012

De novo as sombras e as calmas II


Por um rosto chego ao teu rosto,
noutro corpo sei o teu corpo.
Num autocarro, num café me pergunto
porque não falam o que vai
no seu silêncio aqueles cujo olhar
me fala da solidão.
Esqueço-me de mim. Tão quieto
pensando na sua pouca coragem, a minha
sempre adiada. Por um rosto
chegaria o teu rosto, mesmo de um convite
ousado fugiria, esta mão conhece-te
e desenha no ar o hábito
por que andou antes de saíres
do espaço à sua volta. Estás longe,
só assim podes pedir algumas horas
aos meus dias. Sem fixar a voz
a tua voz é uma corda, a minha
um fio a partir-se.
in De Novo as Sombras e as Calmas, Lisboa: Contexto 1990

De Novo as Sombras e as Calmas


Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava
o que ia ficando nas pausas entre cada
sorriso. Por ti mudei a razão das coisas,
faz de conta que não sei as coisas que não queres
que saiba, acabei por te pensar com crianças
à volta. Agora há prédios onde havia
laranjeiras e romãs no chão e as palavras
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua
que foi comum, o quarto estreito. Um livro
é suficiente neste passeio. Quando não escreves
estás a ler e ao lado das árvores o silêncio
é maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo. Pudesse eu propor-te
vida menos igual, outras iguais obrigações.
Havias de rir, sair à rua, comprar o jornal.
in De Novo as Sombras e as Calmas, Lisboa: Contexto 1990

terça-feira, 8 de maio de 2012

Do amor

Da V. para B. 
De B. para V.

O amor é de outro reino. Da amizade, do amor, do encontro de duas pessoas que se sentem bem uma ao lado da outra, fazendo amor, falando de amor, trocando amor, conversando de amor, falando de nada, falando de pequenas histórias código de ministros com aventuras de aventuras sem ministros conversa alta e baixa de livros e de quadros de compras e de ninharias conversas trocadas em miúdos ouvindo música sem escutar música que ajuda o amor o amor precisa de ajudas de ir às cavalitas de andas de muita coisa simples amor é um segredo que deve ser alimentado nas horas vagas alimentado nas horas de trabalho nas horas mais isoladas amor é uma ocupação de vinte e quatro horas com dois turnos pela mesma pessoa com desconfianças e descobertas com cegueiras e lumineiras amor de tocar no mais íntimo na beleza de um encanto escondido recôndito que todos no mundo fizeram pais de padres mães de bispos avós de cardeais amor agarrado intrometido de falus com prazer de alegria amor que não se sabe o que vai dar que nunca se sabe o que vai dar amor tão amor.