domingo, 28 de setembro de 2014

Pausa


Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro. Em vez disso está repleto
de uma estranha doçura, que aumenta
com o passar das horas –
quase como a terra
após um aguaceiro,
que fica sozinha no silêncio a beber
a água caída
e pouco a pouco
nas veias mais profundas se sente
penetrada.
A alegria que ontem foi angústia,
tempestade –
regressa agora em rápidas
golfadas ao coração,
como um mar amansado:
à luz suave do sol reaparecido brilham,
inocentes dádivas,
as conchas que a onda
deixou sobre a praia.

in MORTE DE UMA ESTAÇÃO, sel. e trad. de Inês Dias, Lisboa: Edições Averno, 2012

sábado, 27 de setembro de 2014

Escreve sempre que precisares de me dizer


Escreve sempre que precisares de me dizer
que há gelo nas tuas mãos e nas paredes do frigorífico.
Os legumes que trouxe ontem
não sobrevivem a mais do que uma geada,
muito menos nós.
Escreve sempre que precisares, podes
dizer-me outra vez que nunca houve inverno,
que este ano não há verão,
que estamos aqui e não estamos porque não sabemos
se somos nós ou se somos aquelas
quatro pessoas que vão à rua agora,
encontraram a porta certa.
Escreve sempre que precisares, faz
uma lista de compras, uma lista de desejos,
anota todos os pedidos que deixaste
em poemas atrasados.
Escreve sempre que precisares
de mais um postal com selo e carimbo.
Escreve sempre que riscares
na tua agenda mais uma morada.
Sempre que eu precisar vais devolver-me
uma caligrafia rebuscada que não é a tua,
curvas a mais que não fazias na letra d.
Já não há desses manuscritos,
só eu e os carteiros aprendemos a decifrá-los
(e toda a gente sabe que nem isso é verdade).
Vai escrevendo. Sempre que eu precisar,
as frases podem desviar deixas decoradas,
repetidas como as mentiras,
demasiado gastas para serem inócuas.
Escreve em vez de costurares.
Mesmo que soubesses, não há remendos suficientes,
arranhaste sem possibilidade de cura os joelhos,
os cotovelos e as canelas
(dançar sempre foi um antídoto fora do teu alcance).
Escreve que eu vejo nas tuas as minhas quedas,
os meus soluços nessas curvas
a mais que não fazes na letra d:
as tuas linhas são rectas, verticais e justas,
as minhas letras são apenas caracteres.
Escreve sempre que puderes
só em vez de apenas,
recursos humanos em vez de
resíduos urbanos. Talvez sejamos mais
do que pessoas, temos tamanhos diferentes
e não servimos nos lugares que nos foram destinados.
Escreve sempre que precisares de uma porta
onde caibas,
nunca trago chaves comigo.

chegaste tão de dentro de mim mesmo


chegaste donde o medo tecia os meus cabelos
donde os pássaros ardiam a voz
donde só o silêncio se desconhecia
era tão larga a morte
que não se podia ver dos meus olhos
chegaste quando o fim sangrava dos meus braços
a casa soterrou-me dos teus passos
terra de mim todo
chegaste pelo coração de água da noite
quando o mistério escorre em grito pelos telhados
e Deus se desabita
chegaste tão de dentro de mim mesmo
que agora a morte me nasce na garganta
a noite e o meu rosto são alguém que eu próprio desconheço

Gosto de pessoas


Gosto de pessoas que aceleram
ante a inevitabilidade do precipício,
roubando assim alguns segundos
ao indecente gozo de Deus.

Os prazeres da leitura


No seu leito de moribundo o meu pai lê
As memórias de Casanova.
Eu vejo a noite cair,
Algumas janelas que se iluminam na rua.
Numa delas uma jovem lê
Junto ao vidro.
Há muito tempo que não ergue os olhos,
Mesmo com a escuridão a chegar.

Enquanto ainda há um resto de luz,
Desejo que ela levante a cabeça,
E eu consiga ver-lhe a cara
Que já consigo imaginar,
Mas o livro deve ser intrigante.
Além disso, que silêncio,
Cada vez que volta uma página,
Consigo ouvir o meu pai, que também volta uma,
Como se eles lessem o mesmo livro.

in Previsão de Tempo para Utopia e Arredores, A&A 2002

after all the pain is gone



I love the tone that's in your laugh
Gasping for an extra breath
Waiting for the time to pass
I believe in days ahead
Don't spend another night alone
Cross and wishing you were dead

Mary, you shouldn't let 'em make you mad
You hold the best you can
And Mary, after all the pain is gone
I'm always gonna live to be your man

I've had it easy now you see
When I'm down you're always there
Standing by to comfort me
Someday we'll go round the world
I'll make the journey so sublime
I know you're not a travellin' girl

Mary, you shouldn't let 'em make you mad
You hold the best you can
And Mary, after all the pain is gone
I'm always gonna live to be your man

Cause I'd give everything I have
Forget all the things that bring me joy
If you could have one day
Pure and simple happiness
Until that moment comes
I'll be here where I've always been
I'm gonna be your friend
Until the day I die

Mary, you shouldn't let 'em make you mad
You hold the best you can
And Mary, after all the pain is gone
I'm always gonna live to be your man

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Fotografia do 11 de Setembro


Atiraram-se dos andares em chamas.
Um, dois, ainda alguns,
mais acima, mais abaixo.
A fotografia deteve-os na vida,
preservou-os
sobre a terra rumo à terra.
Cada um ainda na íntegra,
com rosto individual
e sangue bem guardado.
Ainda há tempo
para os cabelos esvoaçarem
e do bolso caírem
chaves e alguns trocos.
Ainda estão no âmbito do ar,
ao alcance dos lugares
que acabaram de se abrir.
Só duas coisas posso por eles fazer:
descrever este voo
e não acrescentar a última frase.

Via CVM

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A friend in need's a friend indeed


A friend in need's a friend indeed
A friend with weed is better
A friend with breasts and all the rest
A friend who's dressed in leather

A friend in need's a friend indeed
A friend who'll tease is better
Our thoughts compress
Which makes us blessed
And makes for stormy weather

A friend in need's a friend indeed
My Japanese is better
And when she's pressed, she will undress
And then she's boxing clever

A friend in need's a friend indeed
A friend who bleeds is better
My friend confessed she passed the test
And we will never sever

Day's dawning, skins crawling [x4]
Pure morning [x4]

A friend in need's a friend indeed
A friend who'll tease is better
Our thoughts compress
Which makes us blessed
And makes for stormy weather

A friend in need's a friend indeed
A friend who bleeds is better
My friend confessed she passed the test
And we will never sever

Day's dawning, skins crawling [x4]
Pure morning [x4]

A friend in need's a friend indeed
My Japanese is better
And when she's pressed, she will undress
And then she's boxing clever

A friend in need's a friend indeed
A friend with weed is better
A friend with breasts and all the rest
A friend who's dressed in leather

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

estamos todos condenados a viver na cela solitária da nossa pele.


E por isso falamos uns com os outros, escrevemos, telegrafamos e telefonamos uns aos outros, de perto ou de longe, cruzando terra e mar, apertamos as mãos à chegada e à partida, lutamos uns com os outros e até nos destruímos uns aos outros neste esforço algo frustrado de atravessar paredes em direcção ao outro. Como disse uma vez um personagem numa peça, estamos todos condenados a viver na cela solitária da nossa pele.

Via Miss V.