Vivo agora aqui, num quarto fechado, a tua roupa, todos os teus
objectos caem sobre mim como trovões. Há um terror teimoso
que me prende a estas gavetas cheias, já me deixei fulminar
numa noite de onde não me queria levantar, e tu à mesma dormindo,
sem dares por nada. A partir daí a minha testa de zombi chocou
contra vidros, paredes e jarras de flores, é testa dura que não se parte.
Foi missa ligeira a que assistimos sem crer, mais um dos nossos
mortos ia a enterrar, cumprir o dever de aparecer por ali e depois,
deitados, nós dois tão afastados, tão mortos. Ver-te no cinzeiro
fora do quarto, de calças oscilantes, arrumando na distância
Ios teus assuntos práticos, é ver-me nisso tudo que perdi e sentir-me
frio, frio, cada vez mais frio. Tenho andado a pensar no nosso caso
e - tirando da estante um livro - está tudo aqui bem claro, disse.
Nunca serei para ti a Grande Mãe, esse maníaco corpo onde te queres
enroscar e buscas protecção para os temores da noite e de deus.
Não te acompanharei nessa viagem sexual até à exausta escuridão
do infinito, não contes comigo para cobrar impostos à tua amoralidade,
nem penses que me comove a tua pena, a tua dor, o teu sofrimento.
Os teus objectos, todas as tuas coisas, os teus sapatos, a tua tristeza,
já não são bem coisas, são palavras que eu levaria comigo para outra casa.
Serei eu quem me lembro de ter sido? É uma questão que só ocorre
num quarto fechado de paredes desiguais, quando a memória
não é senão um facto igual a tantos outros e o teu cordão de histórias
repete datas - num dia de setembro, por exemplo, amámo-nos.
Dez dias fora. Ao longo dos dez dias vou sentindo cada vez mais
escuridão e contudo no dia marcado para o teu regresso há tanta alegria
na minha boca (mesmo se fechada a boca põe os lábios
de outra maneira, deixa entrever metade dos seus dentes) que
só me apetece escrever um enorme e ridículo poema épico.
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