A solidão ecoa nas paredes rosa deste pátio
se não fosse a minha solidão dir-se-ia ser o vento
apenas sei que quando me sento
nestas tão verdes pernas metálicas
os sinos alcançam o tempo para lá de si mesmo
isto é o tempo onde o tempo acaba
e outra coisa começa
uma força maior do que as minhas tão débeis forças
força-me a seguir uma estranha marcha
e no meio da procissão surges uma vez mais
como uma promessa de alminhas mortas
pisando-me o peito e o rosto
como se sentisse remexer-se a terra
que um dia nos receberá tão apartada
e fossem teus os beijos de toda a gente
no roxo menino que o pano envolve
porquê então esquecer-te se até no esquecimento
tu vives e respiras e andas?
mea culpa
por tão minha nobilíssima culpa
tu és a enormidade de todos os desamparos
tu és esta marchinha tão fúnebre
no alto da minha aldeia
ainda assim me perguntas
que faço eu aqui a teu lado nestas horas tão escuras?
e lembramos todos os romances
a cujas páginas arrancámos o amor
e lembramos do sobretudo
esquecido sobre aquele verdíssimo banco
num londrino parque numa noite de chuva
e lembro
sobretudo eu lembro-me
de que eras apenas tu o único capaz de me lembrar
que eu sou este ser literário
a quem um dia o sangue derramou dourado
sobre a fúria sobre a ternura da carne e do símbolo
de que eras apenas tu
a quem podia olhar de forma inconfessável
de que eras apenas tu que sabia
que não nos basta estes collans de vidro prateado
que nos foram dados no mais remoto dos nossos aniversários
que eras tu que sabias que os meus olhos
podiam ser azuis ou encarnados
pois eu continuaria a ser eu eu eu
eras tu esse ser tão vividamente literário
e merda para todos aqueles que maldisseram a literatura
por tanta merda ter passado como se fosse literatura
a literatura é vida
a literatura é literatura
e tu és daqueles que sabes que os olhos da literatura
podem ser azuis ou encarnados
pois ela continua a ser literatura
apenas tu eras aquele que sabia
que apesar de tantas horas passadas na cozinha
eu como tu ou o Dr. Jekyll bem que podíamos viver de morangos e de alegria
Nestas horas
os meus olhos vão ter com os teus
maltrapilhos humanos seguros apenas
por esta massa opaca de água
que em horas como estas
nos toldam as vistas
nos dão a importância do que perdemos
e perdido estará para sempre como numa sala escura
para onde tudo o que não é vai
Andam assim desaparecidos durante horas
e depois retomam a este paradeiro onde tenho
nome civil, emprego, morada
e a cada três segundos
num profundíssimo silêncio
que até ao mais duro dos homens comoveria
se pudesse ser ouvido
morre um poeta.
Isto agora só um dilúvio lava
oiço uma mulher atrelada a um cão a dizer
sobre as estivais cacas.
Sim, isto agora só um dilúvio lava.
Foto de Oleg Oprisco