quarta-feira, 11 de novembro de 2015

dilúvio


Chove. As ambulâncias já ligaram as suas sirenes. O acidente ainda não aconteceu, mas com certeza não vai tardar. E, por isso, quando chove, penso na morte. Na morte daqueles que amo e de todos aqueles que deveria ter amado se soubesse como. As ambulâncias desligam as sirenes. Levo a mão ao sexo. Modo de chorar. Modo de despedida.
Chove. Cheira a narcisos no centro da cidade. As velhas estão dentro de casa aconchegando o tempo às pernas exangues. O sangue teima em circular embora a cabeça descaia vezes de mais. As velhas estão dentro de casa, salvo aquela que aquece sempre os pés na calçada. Percorre as ruas da cidade faça sol faça chuva. E nos seus cabelos compridos a chuva deixa gotas que parecem pérolas.
Chove. Nos centros comerciais, há homens sentados junto às escadas rolantes. Estão pensativos. De vez em quando, esticam o pescoço, giram-no para a esquerda para a direita, movem-no para cima para baixo. Pensam na vida. Ela corre dentro deles como se fosse explodir dentro de segundos. E vai. Não estes segundos, mas outros, os próximos, talvez. Agora, ela chega-lhes em catadupa, escorre para fora deles.
A chuva parou. As putas animam os passeios trocando receitas de cozinha. Riem mostrando os dentes negros. Nascem, estão a nascer, novos clientes. Hão-de crescer depressa. Hão-de levar as mãos aos bolsos. Quanto a elas, é certo que não morrerão nunca.
Uma mulher está sentada a uma mesa. Leva de vez em quando o cigarro aceso aos lábios. Observa discretamente quem passa, não vá pensarem… Não tem importância, ela pensa por eles. Pensa com tanta força que parte a caneta contra a página. Ou então pára de escrever. Risca a página como se mudasse de vida.
Recomeça a chover. Calo-me. Por que não chove ininterruptamente durante um século? Criámos um deus de amor, mas não fazemos a menor ideia do que seja amar.

foto de Sónia Silva

terça-feira, 10 de novembro de 2015

hoje vou com aquele que me levar


e se for uma mulher
vou com as suas mãos que remendam
e não substituem
e se for um homem
vou com as suas mãos que remendam
e não substituem
e se ninguém houver
vou com ninguém que me leva sempre
para onde não quero
e vou com as suas mãos que substituem não remendam
é por isso que à noite
espreito para a janela dos comboios
e cumprimento-me timidamente

texto via blog de tanto bater o meu coração parou
foto de Sónia Silva

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Lido 3


Afirmas que brigamos. Que foi grave.
Que o que dissemos já não tem perdão.
Que vais deixar aí a tua chave
E vais à cave içar o teu malão.
Mas como destrinçar os nossos bens?
Que livro? Que lembranças? Que papel?
Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens
Não te devolvo – é minha – a tua pele.
Achei ali um sonho muito velho.
Não sei se o queres levar, já está no fio.
E o teu casaco roto, aquele vermelho
Que eu costumo vestir quando está frio?
E a planta que eu comprei e tu regavas?
E o sol que dá no quarto de manhã?
É meu o teu cachorro que eu tratava?
É teu o meu canteiro de hortelã?
A qual de nós pertence este destino?
Este beijo era meu? Ou já não era?
E o que faço das praias que não vimos?
Das marés que estão lá à nossa espera?
Dividimos ao meio as madrugadas?
E a falésia das tardes de Novembro?
E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?
De quem é esta briga? Não me lembro.

Via blog Sketches for my sweetheart the drunk
ilustração Sebastião Peixoto

Lido 2


Como em ti, há em mim várias camadas de mortos não sei até que profundidade.
Raul Brandão

Via blog o corpo estremece de saudade

Lido


Gostava de me voltar a cruzar com todos os homens com quem já estive e dizer-lhes:

Agora

estou

assim.

Via blog Dias Cães.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Só queria ser uma dessas pessoas


Só queria ser uma dessas pessoas
que ao fim do dia passeiam o cão pelo jardim
com um saco de plástico para recolher a merda.
Dessas que ninguém dúvida
que tem uma família feliz à espera.
E uma família feliz não é um prato
encomendado no chinês do bairro,
para aquecer no micro-ondas,
é uma mulher que quer envelhecer comigo
e que a cada noite me dá a mão e me leva
do sofá para a cama.

inédito, Novembro|2015
Foto: Couple, François Kollar, 1930

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

#moodtonight

Foi como amor aquilo que fizemos
Sem manhã sujeitos ao presente;
Os dois carentes
Foi logro aceite quando nos fodemos.

Foi circo ou cerco, gesto ou estilo
O termos juntos
Sexo com ternura
Foi candura
Num clima de aparato e de sigilo

Num clima de aparato e de sigilo
Num clima de aparato e de sigilo.

Se virmos bem
Ninguém foi iludido
De que era a coisa em si - só o placebo
Com algum excesso
Com algum excesso que acelera a líbido.

E eu palavrosa, injusta desconcebo
O zelo de que nada fosse dito
E quanto quis
E quanto quis tocar em estado líquido.

Foi circo ou cerco, gesto ou estilo
Num clima de aparato e de sigilo
Foi circo ou cerco, gesto ou estilo
Num clima de aparato e de sigilo
Foi como amor aquilo que fizemos
Os dois carentes
Foi logro aceite quando nos fodemos


domingo, 1 de novembro de 2015

Tive um coração, perdi-o

Tive um coração, perdi-o
Ai quem mo dera encontrar
Preso no lodo dum rio
Ou afogado no mar

Quem me dera ir embora
Ir embora e não voltar
A morte que me namora
Já me pode vir buscar

Tive um coração, perdi-o
Ainda o hei-de encontrar
Preso no lodo dum rio
Ou afogado no mar