terça-feira, 17 de junho de 2014

L de Ler


Cada um regressa aonde pode e ele volta sempre à cara das palavras. Como uma campânula exposta ao seu órgão de luzes procurava o sentido dos nomes, a morte percutida, a fala transformada no som da linguagem, a arte esquecida e excessiva da poesia. Num tempo neutro acordo onde brilha perdido o dia um peixe. Deu passos em volta, feridos que bastasse, disse sim, também eu se quisesse enlouquecia. Bordou páginas e páginas pelos séculos adiante, noites inteiras, entregue a quase toda a vida dessa voz em maton. Quase toda. E concluiu: meu deus, não compreendo nada. Talvez seja louco revulsivo. E meteu-se debaixo do vulcão. Aspirava a esquecer tudo, deixar que a luz viesse do princípio. Era quando morríamos entregues à febre. Alguém tocava um piano velho dentro do copo de vinho que bebia e do fundo do café apenas chegava o inverno sem sons. A viagem ao fim da noite. Tropeçou em muitos lugares, tropeços e tropeços, semáforos trocados, algumas vezes caiu, pouco. Mas nunca mais de lá saiu, do sítio certo. Nem é preciso, está tudo dito, e é definitivo. Faltava acabar a obra, o outro lado do crime. Porque foi assente: apenas o amor e as palavras são dois crimes sem perdão. E é aqui que aparecem cidades indefesas  presságios a tatuar-lhe a alma, a violentar as margens do que já tinha sido o sangue prisioneiro. É um menino musical, um grafonolinho. Fala, fala e fala. Como as crianças que têm medo no escuro e precisam de ouvir nem que seja a sua própria voz. Ela está permanentemente no escuro. Ele é um homem  que tem uma certa dificuldade em ouvir mais de dez por cento do que lhe dizem. Mesmo quando, ou sobretudo quando está a olhar nos olhos de quem fala.  De repente diz qualquer coisa, uma frase, uma palavra, e é a síntese perfeita. O acorde perfeito, já agora. De modo que, veja-se, aconteceu esta coisa um tanto apocalíptica: descobriram que se entendiam segundo as leis de uma energia desregulada - e imagina-se isto aplicado a dois corpos em movimento. Há quem lhe chame paixão, há quem diga que é onde um homem pode começar a morrer. Porque, também já se sabe, agora o combate é de vida ou de morte. O verdadeiro lado donde o crime será fatal.

In O Nome do Mundo
texto via blog Arquivo de Cabeceira

Amor


Já não me amas, estamos apenas. Acarinhas-me como sempre, mas já não procuras saber de mim. Findaste a tua busca e repousas tranquilamente nos beijos ocasionais. O sexo, último reduto da consumação plena do nosso amor, continua puro, mas morre só, nada vem depois. Tão simplesmente porque o amor carnívoro que me tinhas acabou. Já não me falas da navalha que trazes no bolso, nem do chão que nos tremeu. O tempo falta-te e queres novas descobertas, já não é em mim que navegas. Talvez os mares exóticos te tenham levado, onde peixes de mil cores te fazem feliz, talvez tenhas regressado a terra, ao lar que é só teu. Na tua ausência, de corpo ainda presente, sinto que perdi aquele que um dia foste para mim, e contigo, perdi-me eu também.
Se o amor morreu, queime-se o corpo; se fugiu, mande-se abater. Só os mortos se choram.

texto via blog Correio da Júlia.

Se juntos já jogamos tudo fora


Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Se ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

Madrigal


gosto quando pões a quinta porque me tocas na perna com o nó dos dedos

Repousar frouxa, farta Murcha, morta de cansaço


Quero ficar no teu corpo
Feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem

E também pra me perpetuar
Em tua escrava
Que você pega, esfrega
Nega, mas não lava

Quero brincar no teu corpo
Feito bailarina
Que logo te alucina
Salta e se ilumina
Quando a noite vem

E nos músculos exaustos
Do teu braço
Repousar frouxa, farta
Murcha, morta de cansaço

Quero pesar feito cruz
Nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem

Quero ser a cicatriz
Risonha e corrosiva
Marcada a frio
Ferro e fogo
Em carne viva

Corações de mãe, arpões
Sereias e serpentes
Que te rabiscam
O corpo todo
Mas não sentes