Certo dia chegou um papelinho oficial a comunicar que o meu pai tinha quinze dias para abandonar o país. Se ficasse, avisavam, corria o risco de ser preso por traição, por infame conivência com a anterior potência colonizadora. A ordem de expulsão era assinada, numa letrinha redonda que sugeria certo recato, por um tal Armando Guebuza. Ficou a minha mãe sozinha no apartamento de Lourenço Marques, na Avenida Central, com três filhos, o trabalho no dispensário, uma vida inteira para despachar em caixotes e contentores. Como se embalam as memórias, os hipopótamos descansando nos lagos, as nuvens taurinas abatendo-se na baía, o chão encerado da casa de Tete? Como se encaixota o cheiro doce das mulheres, a brancura fosforescente dos dentes do meninos? A minha mãe teve apenas ajuda de um amigo, o Gomes, um homem pequenino, com uns dentes muito salientes, a fazer lembrar um esquilo gigante, que se desfazia em diligências, ia buscar um papel ali, carimbava outro acolá, dizia Solange é preciso você fazer isto ou tratar daquilo. Contudo, pobre esquilo, era incapaz de um gesto arriscado, de um suborno, de mover uma influência, de dar uma palavrinha a um chefe de repartição para acelerar o caso da minha mãe. Cumpria escrupulosamente as regras estabelecidas pela administração do recém-nascido país que desprezava com dissimulação. Apesar da catadupa de dificuldades, a minha mãe conseguiu embalar tudo. Ficou só a Vitória, empregada-menina, chorando a um canto da cozinha amarela, dizendo que também queria vir para a metrópole. Por muito que a minha mãe lhe explicasse que a nossa vida futura era uma incerteza, que não se podia responsabilizar por ela, a Vitória derramava lágrimas grossas, violáceas como a noite. Assegurava que, se preciso fosse, cruzaria os mares enfiada num contentor, sentada na cadeira de palhinha onde costumava dar de mamar à minha irmã.
Tratados os papéis, a minha mãe preparou-se para voltar. Vestiu-nos as melhores roupas. O meu irmão calçou os sapatos de verniz com fivela e penteou os caracóis com um pente de dentes largos. Porém, uma mulher branca, sozinha, com duas meninas e um menino mulato, que não era seu filho, levantava sérias inquietações aos zelosos guardas do aeroporto. Para seguir viagem, disseram, a minha mãe teria de arranjar uma autorização da mãe biológica do meu irmão. Nunca soubemos como a minha mãe conseguiu trazer o meu irmão, como evitou essa perda irreparável, como garantiu que continuássemos para sempre a ser três. Ela não conta. Mas eu desconfio que, ao contrário do Gomes, o ajudante-esquilo, a minha mãe sabia como as coisas funcionam em Moçambique. Nessa tarde, os guardas do balcão de embarque do aeroporto celebraram o dia. Tiveram com que pagar o amor ordinário das ruas esconsas da cidade. Comeram travessas róseas de camarão tigre. Beberam até os corpos adormecerem de cansaço. E não repararam na abóbada celeste que, nessa noite, se cobriu de estrelas violáceas, iguais às lágrimas grossas de uma menina que nunca chegou a cruzar o mar.
(O melhor dos jantares de família são as memórias laurentinas que desfiamos com descontida emoção até ao momento em que o meu pai, já bebido, começa a chamar filho da puta ao Armando Guebuza. Grandessíssimo filho da puta, é como ele diz. Nós calamo-nos, embaraçados. Não se ofende assim, por dá cá aquela palha, o presidente da república de um país.)
Texto de Ana Cássia Rebelo - via blog Ana de Amsterdam
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