terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Inferno


nem sempre o inferno é noturno, nem tão dantesco
nem parecido com as fundições de Hieronymus Bosch.
o inferno pode muito bem ser acordar para o recheio
silencioso da casa, as mesmas três maçãs solitárias
na fruteira, o edredão puxado para trás sobre a cama
as dedadas no espelho do quarto, o desarranjo de papéis
em cima da mesa, as garrafas espalhadas pelo chão
a marca indelével do cigarro na ponta dos dedos

porque a solidão cansa, como cansam as palavras de
que precisamos depois do silêncio de que precisávamos.
somos todos bem mais humanos do que pensamos
mesmo orgulhosamente agarrados ao vazio, mesmo
apertando as palavras à garganta, como se apertam
os botões de cima e a maldita gravata por cima deles

nem sempre o inferno é noturno, nem subterrâneo
nem tão icónico como as descidas de Ulisses e de Orfeu.
à viva luz do dia, no plano horizontal da calçada, no lixo
que se acumula em cada esquina ou por dentro de nós
o inferno tortura, faz-nos iguais a todas as almas errantes
de que a memória se socorre, ainda ensonada, miserável
Via blog Dias Desiguais.

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